quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O ator romano - nível 4

Quanto à origem do ator romano, o historiador Tito Lívio (59 a.C. – 17 d.C.), em pesquisas sobre a fundação de Roma, nos dá também razões de ordem religiosa, uma vez que, por motivo da disseminação de pragas, atribuídas à ira dos deuses, atores da região da Etrúria foram chamados, no ano de 364 a.C., para aplaca-las. Entretanto os romanos sofreram a influencia grega; mais exatamente da fase de decadência do teatro grego, quando os textos helênicos tinham perdido profundidade e inspiração, e os atores haviam assumido a exploração de efeitos gratuitos e um profissionalismo interesseiro. Durante dois séculos, o teatro romano viveu em instalações provisórias e desmontáveis, especialmente na cidade de Roma, terminado por superar o teatro cômico grego quantitativamente e em matéria de organização.

O romano da antiguidade teve menor inclinação para a arte dramática, optando pelos jogos violentos, pelas competições, pelas corridas e pelo circo. Talvez as guerras constantes travadas para extensão do vasto império tenham lhe dado certo desprezo pelos valores da cultura literária. Entretanto coube-lhe o especial papel de transmissor de culturas, à medida que ia dominando e assimilando a arte de outros povos. Sem a dimensão cerimoniosa do teatro grego, o teatro romano decaiu levando desses inícios a marca vigorosa do gosto pelo majestoso e pelo espetacular.

Antes do século II a.C., atores populares da cidade osca de Atela, na região da Campânia, de colonização grega, chegaram em grandes levas a Roma, pela via Ápia, portando divertidas máscaras e improvisando diálogos espontâneos e habilidosos, que caracterizavam tipos com padrões de comportamento conhecidos: Pappus, era um bonachão senil, vitima da mordacidade e da pilheria; Baccus, um camponês grosseiro, sempre infeliz nas aventuras amorosas, alem de idiota e guloso; Maccus, gordalhão vermelho e inchado, fanfarrão e imbecil, que se locupletava com suas torpezas; Dossenus, corcunda e astucioso, metido a filosofo0, pretendo tudo saber, exprimindo-se por sentenças sem sentido, que contrastavam com o analfabetismo dos campônios. Graças a estas máscaras, entre outras, os atores podiam se ocultar. Eram, de início, amadores sem nenhum intuito profissional. Improvisavam situações corriqueiras na comunidade a partir de um roteiro simples, o que não exigia nenhum esforço da memória ou recitação. Posteriormente a Atelana contou com artistas profissionais e foi incluidaem festividades estatais, sendo apresentada ao final delas, depois de representação das tragédias e do teatro sério, como o drama satírico na Grécia. Segundo observação do poeta satírico Juvenal (60 – 140 d.C), tanto uma como outra visavam secar as lágrimas dos espectadores.

Durante o império as Atelanas sofreram a concorrência dos Mimos e se interiorizaram pelas províncias de Roma. A diferença entre os atores da comédia Atelana e os mimos romanos é que estes não usavam máscaras mas tão somente o próprio corpo e a capacidade de mímesis, de mutação, quase nunca empregando a linguagem labial, já que o caráter essencial da representação ficava com a ação mímica da expressão fisionômica, do gesto e da dança. A origem desse gênero de espetáculo, assim, estaria nas danças primitivas em honra aos deuses, as quais imitavam animais, os atos e as paixões dos homens, os deuses da vegetação e da fecundidade, daí seu caráter às vezes obsceno. Numa fase mais avançada, estas danças passaram a contar com coros e seus couretas.

Também aqui duas linhas distintas de manifestação se desdobraram, promovendo caracteres que reduzirão cada vez mais o sentido mímico, dando origem à tragédia e à comédia romana. O mimo vai surgir quando o coro se desfizer e os dançarinos ganharem maior independência, como grupo ou isoladamente.

Conforme o testemunho dos poetas Ovídio (43 a.C. – 18d.C) e Marcial (40 – 104 d.C), o mimo, além do cômico, realista e grosseiro, explorava o gosto popular parodiando os assuntos da dramaturgia e da mitologia greco-romana.

Um primeiro ator conhecido como mimos romano teria sido Pompílio, referido por volta de 212 a.C. Quatro décadas depois os mimos passaram a fazer parte da floralis, festival em homenagem à deusa Flora, de caráter Campestre e licencioso. Assumindo forma literária por volta de 50 d.C., o mimo consagrou Décimo Labério e Publílio Siro (ambos do século I a.C), embora este ainda costumasse improvisar os seus mimos enquanto aquele os escrevia. Labério tornou-se famoso historicamente por sua irreverência até com o próprio César, que o Castigou obrigando-o a interpretar suas personagens, o que era motivo de ofensa e vergonha a um distinguido escritor. Ao contrario do que aconteceu em Atenas, a profissão do ator não era considerada digna, sendo desempenhada por escravos, à exceção do chefe do elenco. Essa situação refletia a condições de escravos dos atores gregos que chegaram a Roma.

Vimos que no teatro grego o número de atores nunca foi além de três e os papéis femininos eram representados por interpretes masculinos. No teatro romano, são inúmeros os textos que exigem cinco atores, muito embora um único ator interpretasse várias personagens. As primeiras peças foram representadas por atores gregos e/ou romanos, chamados Comoedis, geralmente histriões recrutados nas camadas inferiores da sociedade. Ainda assim, pela quantidade de teatros construídos , o número de atores foi crescendo a ponto de se criarem escolas de atores dirigidas por retóricos, e até o tempo de Cícero (106-43 a.C.) o ator merecia certa consideração. As ruínas dos teatros de Arles, Orange, Bordéus, Besançon, Roma, Pompéia e Herculano, algumas ainda existentes, dão a idéia do grande número de espectadores que acorriam a estas construções para assistir a um verdadeiro “proletariado de atores”.

Os atores constituíam companhias sob a coordenação de um primeiro ator, todos propriedades de um amo ou senhor, que cobravam os soldos que eles ganhavam. As mulheres assumiram já desde o Império os papéis femininos, talvez por influência dos mimos, que sempre foram representados por elencos mistos. A remuneração que os atores recebiam variava segundo o critério dos organizadores e dependia sempre de seus méritos. Uma gratificação extraordinária poderia ser oferecida, caso o trabalho fosse realmente exuberante, além de prêmios, desputados em concursos.. Em muitos casos, após uma série de bons serviços, o ator recebia a tão cobiçada alforria, que lhe dava a possibilidade da profissionalização como professor, como diretor de espetáculos ou, pelo menos, como ator. Contudo, ao lado das recompensas, muitas vezes havia punições, que iam de multas a castigos corporais, passando pela prisão, quando os atores representavam mal ou eram vaiados pelo público ( risco que corriam tanto os libertos quanto os escravos).

Outro fator que contribuiu para rebaixar a condição de ator foi o fato de as agremiações de atores gregos, à época da dominação romana, terem admitido em seu meio outras classes de artistas. Assim também os romanos nivelariam atores, gladiadores, atletas, acrobatas e bufões de baixa categoria; também os mimos eram aceitos em suas associações.

Apesar de tudo isso, os atores romanos conquistaram pouco a pouco uma condição social mais considerada, que lhes brindou muitas vezes com a convivência governamental, tanto da República quanto do Império. Havia entre os atores alguns favoritos, em torno dos quais o povo chegava a formar verdadeiras torcidas entusiasmadas: Ceteris por exemplo, usufruiu, além da popularidade, luxuosos privilégios públicos por ter sido amante de Marco Antônio (83-30 a.C.); Dionísia granjeou uma renda fora do comum por seu exuberante talento; Pílades, oriundo da Cecília, na Ásia Menor, e grego de nascimento, especializado na pantomima de tragédia, escapou do desterro imposto por Augusto (63 a.C.-14 d.C.) graças a pressão popular que obrigou o imperador a levantar a sentença; Batilo, grego nascido na Alexandria, converteu-se em ídolo das damas romanas por sua graça feminil ao representar leda com o cisne; Glaffo foi citado por Ovídio como famoso pelas cenas de luxúria, a ponto de adotar uma espécie de “ cinturão da castidade masculina” para se defender do assédio das espectadoras.

Mas o teatro em Roma foi, tornando-se espetáculo deprimente, atingindo um nível de degradação tal que a sociedade sentia náuseas ante as execráveis encenações. Paris, o velho, e Paris, o jovem, pai e filho, foram vítimas, em seus tempos, do favoritismo e do assassínio promovido pelos imperadores Nero ( 54-68 d.C.) e Domiciano ( 81-96 d. C.); Mnester, outroescandaloso favorito de Messalina(22-48 d.C.), viu certa vez seus espectadores serem açoitados por ordem do imperador Calígula (12 a.C.-41d.C.) em virtude de terem interrompido uma pantomima sua; Favor, denominado arquimímico , representou uma paródia nos funerais do imperador Vespasiano (9-79d.C.); no século l a. C. , Roscius, recrutado dentre os escravos, alcançou tal importância social que foi venerado em seu tempo e teve seu nome reconhecido posteriormente como mestre em sua arte; Teodora, a mima mais famosa da antiguidade bizantina, nascida em Constantinopla, no início do século VI d.C., filha de um guardião do Hipódromo, tornou-se atriz, cortesã e amante do imperador Justiniano I (482-565d.C. ), com quem se casou antes de subir ao trono.Terminou seus dias de escândalos em 548 d.C. e passaria à história como a imperatriz do último reduto ocidental do teatro até a invasão dos bárbaros.

O grande educador Quintiliano (30-100 d.C.), na época do imperador Domiciano, tentou a reabilitação já se instituíra, e a Igreja cristã, indignada com a corrupção da cena, vai, através do teólogo romano Tertuliano (155-220 d.C.), “negar aos mimos e pantomimos qualquer pretensão à redenção cristã em sua obra De SPECTACULIS”, a não ser que abandonassem a profissão, segundo rezava o sínodo provincial de Illiberis, Granada, de 305 d.C. por essa época, os mimos buscaram o aplauso parodiando os adeptos e os cerimoniais da nova fé. Ainda assim, no século IV, o católico Arius propôs um teatro cristão para combater o paganismo da cena romana, o que lhe valeu a excomunhão como castigo. No entanto alguns mimos confessaram a nova religião: em 275 d.C., Porfírio se converteu, em Casaréia, na Capadócia; Gelasino, em 279 d.C., na cidade de Heliópolis, na Fenícia; um ano depois, Ardálio, no Oriente. O martírio do ator Genésio, em 303 d.C., em Roma, durante as cruéis perseguições aos cristãos promovidas pelo imperador Diocleciano (245-313 d.C.), promoveu a conversão do mimo a São Genésio, o santo protetor dos atores.

O edifício teatral romano tinha a orquestra menos espaços que a do teatro grego; por outro lado, a cena avançava bem mais. Suas construções eram imensas e com capacidade para acolher grandes multidões. Nesses ambientes, a voz era condição precípua para os atores, tanto na tragédia quanto na comédia. No ano 56 a.C., o palco romano imtroduziu, repentinamente, o pano de boca.

O trabalho de aprendizagem dos papéis, exigindo esforços pacientes e continuados, afugentou os jovens romanos mais afeitos à improvisação do que à interpretação de textos completos, que deveriam ser declamados de cor e segundo regras consagradas. Além disso, não lhes agradava a condição de escravo que o trabalho disciplinado do teatro exigia, com a posição de homens livres. Daí a preferência pela atelana, que se aproximava bastante dos divertimentos chamados SATURAS, tradicionalmente latinos, nascidos espontaneamente das festas regionais e que comportavam fantasias e máscaras alegres, permitindo aos intérpretes se ocultarem sob os disfarces. Como a SATURA, a atelana era improvisada a partir de um roteiro, não exigindo qualquer esforço de memória, nem de recitação.

O ator, nos últimos tempos romanos das invasões bárbaras, quando os teatros são fechados, vai manter-se ambulante com pantomimas e acrobacias. Assim, alcançaram aos poucos a degenerescência ea a espetacularidade mais baixa. Eram recrutados ente pessoas desclassificadas, mercenárias, apelando aos mais grosseiros efeitos para atrair o aplauso de uma sociedade também decadente, de instintos soltos e sensualidade desorientada. Os atores haviam perdido a dignidade e o senso moral, deixando longe no tempo o épico primitivo das atelanas, o primor e o brilho das comédias de Plauto (254-184 a.C.) e de Terêncio (190-159 a.C.).


trecho do livro HISTÓRIA E FORMAÇÃO DO ATOR - Enio Carvalho

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