quinta-feira, 2 de outubro de 2008

HISTÓRIA E FORMAÇÃO DO ATOR - Enio Carvalho

NÍVEL 3B
INTRODUÇÃO

Entre os profissionais de teatro, o ator é o que expõe sua personalidade, seu próprio corpo, é o que é visto e, por isso mesmo, corre o risco de desgaste do seu delicado instrumental – é um dos poucos artistas que tem seu veículo de expressão inseparável de si próprio -, instrumental este que envolve corpo, voz, dotes psicológicos e mentalidade.

Para falar a respeito de sua história e formação vai interessar mais olhar a evolução histórica do ator, espontânea ou não, com vistas a colher os fundamentos mínimos à sua habilidade profissional, à sua suficiente atuação. Devemos assim conhecer experiências consumadas para entender melhor seu desenvolvimento profissional. Interessaria descobrir o ator de cada um e não impor um padrão de ator. O processo, consequentemente, deve variar em função das necessidades e carências do aluno ator, voltado para a sua autonomia e crescimento. Uma proposta curricular para a formação do interprete cênico deve prover experiências pessoalmente satisfatórias para cada aluno individualmente, sem, no entanto, deixar de considerar o grupo e os conhecimentos básicos desenvolvidos em todo o universo cultural e humano, oportunos ao teatro.

De maneira geral, encontramos grandes dificuldades em localizar uma história do ator: sua atividade sempre aparece diluída nas histórias do teatro, já que a ênfase está no texto dramático (um material mais permanente para pesquisa e análise) e nos grandes eventos teatrais ou que envolvem o teatro. Acrescente-se a isso a relativamente pouca preocupação com o trabalho do ator, seu significado histórico, estético e social, que se verifica tanto no nível internacional quanto nacional. Os trabalhos de maior extensão compreendem um ou outro período histórico; no máximo um século. Coube-nos, assim, a atividade de recolher esparsos documentos ou referencias inúmeros depoimentos, varias biografias e os reconhecidos tratados sobre o trabalho cênico do interprete teatral.

Além de sua evolução histórica, tornou-se necessário considerar a formação propriamente dita do ator, tanto nos grandes centros internacionais quanto nos nacionais, bem como a formação que se verifica numa escola e a que se realiza num agrupamento teatral. A formação em escola geralmente apresenta uma programação previamente estabelecida, enquanto as agremiações livres desenvolvem uma busca em aberto e assentado na própria experimentação.

Popular na sua origem, como a commedia dell’ arte italiana, cortesão como o teatro tailandês, vinculado ao ritual como na África, religioso como os autos medievais europeus, ou confessadamente divinos como o indiano, o teatro sempre foi a expressão objetivada de uma cultura, alimentando-se de mitos, lendas e costumes populares, de estilos históricos de vida e assimilando todas as formas de expressão e comunicação humanas. A atividade cênica teatral abrange um imenso panorama de formas, que vai do eletrizante espetáculo do teatro kabuki japonês , passando pela ópera, pelo musical norte-americano, pelo teatro da catequese, pelos cenários despidos de acessórios do teatro , até o teatro pobre de Grotowski, não sem antes incluir o cinema e a televisão. Ele pode ser apresentado em qualquer espaço, tanto numa casa especialmente constuida quanto nas ruas e praças. Pode ser um teatro que obedeça a rígidas convenções, ou improvisado, como o das experiências vanguardistas. Pode recriar grandes momentos partindo de mitos, da religião, da historia, ou ser uma forma de ação direta de grupos marginais.

Na Grécia antiga o ator era “uma voz e uma presença”- como disse alguém- , em Roma tornou-se um corpo discursivo, enquanto no teatro da Idade Media foram os eclesiásticos e homens do povo hábeis na dicção. Na Renascença o ator pretendeu tornar-se natural e dedicou-se a imitar de forma prodigiosa o que observava ao seu redor. No século XVII exigiu-se-lhe um compromisso com a razão,e a partir daí as teorias se sucederam: Gordon Craig ( 1872-1966) pretendeu prescindir do ator, tornando-o uma “ supermarionete”, enquanto Constantin Stanislaviski ( 1863-1938) concluiu que o ator seria o único senhor da cena.

Cumpre, portanto, conhecermos o que é o ator, o comediante, e todos os problemas que o envolvem para depois concluirmos sobre o melhor caminho a cumprir na formação dessa instituição central do teatro.

DAS ORIGENS AO SÉCULO XVII: O ATOR PREPARADO INFORMALMENTE

“Como a tragédia, a comedia liberta-nos ( e essa libertação, como vimos, é própria da arte dramática), mas a tragédia liberta-nos de uma dúvida, a comédia, de uma timidez; a tragédia revela-nos quem somos, a comédia, o que podemos fazer.”

P. - A. Touchard Dionísio.

As origens do ator

Para melhor entendermos o objeto central de nosso estudo, busquemos algumas definições sobre o ator. A conceituação mais simplificada diz-nos que o ator é o “ individuo que representa um papel em peça de teatro, de cinema, de televisão, radioteatro ou espetáculo”, e esta definição pode ser encontrada em qualquer dicionário enciclopédico. Tal conceito, certamente incompleto, nos diz muito pouco. Entretanto algumas vezes esta definição vem acompanhada do sentido figurado que se dá ao vocábulo ator: “indivíduo que finge o que não sente”. Tal oração parece dizer muito mais já que conota alguma polêmica muito pertinente ao problema da atividade do ator.

De todas as palavras sinônimas do ator- comediante, cômico,histrião, farsante, etc.- , nenhuma é tão exata, e antiga, como hypokrités, do grego: hiócrita, isto é , o respondedor, o ator, o que representa todos os papéis requeridos pelo coro,o simulador, o que finge. E que outra coisa é o ator senão um ser destinado à simulação, a fingir tanto a dor quanto a alegria? Simular é sua missão primordial desde suas mais remotas manifestações. A perfeição da simulação e do fingimento está na razão direta da sensibilidade e da inteligência do interprete. Eis aqui a essência do ator, instituição central da complexa arte dramática.

A partir de agora estaremos considerando o ator sempre em seu sentido mais amplo e sem especialismo nenhum, quer seja de época, estilo ou sistema. Quando estivermos citando ator, estaremos referindo tanto o ator de teatro como o de cinema, de circo, de televisão, de radioteatro, etc. , ou seja, aquele homem que é veiculo de expressão de uma ação cênica para um determinado público.

A busca da origem da atividade do ator se confunde, certamente, com a própria origem do teatro. Quanto ao teatro ocidental, como inúmeros compêndios já cuidaram de localizar, vamos encontrar nos cerimoniais religiosos da Antiguidade os inícios de manifestações já bastante próximas daquilo que logo ganhou a denominação de teatro.

Para Aristóteles ( 384-322 a.C.), a tragédia tem origem nos primeiros e mais sérios momentos do cerimonial religioso das festas dionisíacas da antiga Grécia, enquanto a comédia adviria das festividades profanas e descontraídas, mais populares e críticas que se sucediam àqueles. Tanto num quanto noutro momento, há um ator-oficiante como instrumento, como veiculo de valores encenados aos fiéis-espectadores. Assim, o teatro como instituição social e cultural isolada, com instrumentos e objetivos próprios, resulta deste binômio original: ator e espectador.Retirado qualquer um desses elementos, o teatro não se realiza. Por outro lado, basta um só ator e um só espectador para que aconteça o fenômeno teatral.

Entretanto, isolando o que nos interessa mais especialmente, o ator, torna-se oportuno buscar origens anteriores às da Antiguidade ática, origens remotas e perdidas na escuridão dos tempos mais primitivos, e arriscar a proposição de que a origem do ator confunde-se com a do próprio homem. Ou seja, o instinto de representação já aparece no indivíduo mais antigo ao desenvolver física e gestualmente alguma informação a outro homem primitivo:a descoberta do fogo, o excercício da caça, o gesto de beber água etc. Já neste breve slide encontramos a possibilidade do binômio fundamental do teatro, mais ainda não encontramos o teatro, uma vez que a interpretação, a encenação, a expressão artística, a estética não são ainda localizáveis. Contudo, já podemos isolar, embrionariamente, o instinto do jogo e do cênico, que são surpreendidos na própria origem da espécie humana.

A forma e o conteúdo da expressão teatral estão condicionados pelas necessidades vitais e pelas crenças religiosas. Delas se derivam as forças elementares que se convertem o homem em médium, capacitando-o a elevar-se acima de si mesmo e de seus companheiros de tribo.

O homem personificou as forças naturais, Converteu em seres vivos o sol e a lua, o vento e o mar; em seres que disputam, lutam e batalham entre si,e que podem ser influenciadas em proveito do homem mediante o sacrifício,a adoração, o cerimonial e a dança.

As fontes pré-históricas, populares e folclóricas, assim como os dados da historia das religiões oferecem um material abundantissimo: danças cultuais e festejos dos mais diversos cunhos, que levam em si o gérmen do teatro como as festas de Dionísio na antiga Atenas”.

O teatro, portanto, é tão antigo quanto a humanidade, não pertencendo a uma raça, época ou cultura; nos gestos mais remotos podemos perceber que são passados códigos essenciais ao desenvolvimento do homem, à reformulação do seu comportamento. Este dado nos parece de suma importância, uma vez que, se já no remoto da atividade representativa acrescentava-se valor ao comportamento do outro, mais tarde os cerimoniais religiosos vão lançar mão dessas simbologias para sedimentar um comportamento que extrapola os limites do humano para alcançar o metafísico.

A história da arte dramática centrada no espetáculo, e, portanto, no ator, é a história natural de todo o processo humano. Este caminho não é de desenvolvimento simples nem fácil, sofrendo, logicamente, espontâneas e naturais alterações. Ora cresce primorosamente, ora decai em crise e parece estancar, mais adiante avança significativos passos num arranque impetuoso, para mais uma vez retroceder... Assim, dialeticamente, vai correndo a história do ator. Como o processo formativo da história humana - reação e revolução -, altera-se e se aperfeiçoa em seu lento evoluir. Mas o ator em qualquer etapa segue sendo substancialmente o mesmo: o elemento preciso de um espetáculo que, sem ele, nunca teria acontecido.

O teatro como fenômeno social está sujeito às leis e dialética históricas; e, dentro dele, o ator, seu veículo mais importante, conforme também afirma Constantin Stanislavski, há de ter sua evolução histórica profundamente polemica, guardando, contudo, alguns elementos próprios e fundamentais, que buscaremos isolar no decorrer deste trabalho para depois atingir conclusões finais.

No intuito de contar uma breve historia do ator, de imediato constamos que há pouco material sobre ele. Encontramos teorias esparsas, algumas poéticas, raras proposições estéticas e inúmeros depoimentos, biografias, estudos a propósito de algum trabalho, e outros discretos documentos, mas nada abrangente e estruturado.

Para uns o teatro tem a idade do homem, para outros nasceu com a dança, para quase todos resulta dos cerimoniais religiosos. Impõe-se daí distinguir, então, o instinto teatral, que seria comum a todo homem, e o teatral propriamente dito, que encontraríamos no ator. O teórico russo Nikolai Evreinov (1879-1953) vai estudar o instituindo teatral, cuja honra da descoberta ele reivindica:

“O homem possui um instinto de inesgotável vitalidade, sobre o qual nem os historiadores, nem os psicólogos, nem os estetas jamais disseram a menor palavra até agora. Estou me referindo ao instinto de transfiguração, ao instinto de opor às imagens recebidas de fora, as imagens arbitrarias criadas dentro; o instinto de transmudar as aparências oferecidas pela natureza em algo diferente. Em resumo: um instinto cuja essência se revela no que eu chamaria de teatralidade.”

Por outro lado, já que o teatro é também oriundo da dança, envolve uma história contada por meio da imitação sem a influencia musical, mas com o uso do ritmo corporal. A Dança já está presente nos cerimoniais religiosos de perdidas origens, como os do Egito do Antigo Império. Então, já se encontram verdadeiras encenações isoladas numa espécie de proto - história do teatro, em que sacerdotes oficiantes ou feiticeiros, buscando reproduzir entidades recolhidas da natureza, do mundo animal ou dos fenômenos climáticos, comportavam-se como atores, bailarinos ou cantores. As manifestações religiosas do antigo Egito já conotavam a possibilidade de uma continuidade cênica, em que um ser desencarnado poderia readquirir vida através de um ser vivo.

Assim, as representações dos mistérios, como dramas litúrgicos, nas cerimônias funerárias do culto do deus Osíris prenunciavam os rituais dionisíacos, que seriam os precursores do teatro grego, conforme referimos acima. Nelas um sacerdote-leitor recitava o comentário exegético como um cronista, enquanto ao seu redor outros fiéis oficiantes desenvolviam adequadas evoluções cênicas. Tanto a anunciação das personagens quanto suas evoluções cênicas estariam previamente escritas para que os espectadores pudessem distinguir os locais designados na sucessão das cenas.

A apresentação contava com grande numero de figurantes, chamados servidores deste ou daquele deus, alem dos sacerdotes que faziam o papel dos deuses envolvidos no mito.

“Isso não queria dizer, contudo, que não houvesse atores profanos à maneira dos mimos ambulantes que vendiam seu trabalho ao templo ou a dignitários locais interessados em realizar dramatizações. Em 1922 descobriu-se em Edfu uma estela, dedicada a Hórus por um certo Emheb, servo de um ator ambulante, que se apresenta na inscrição com ‘aquele que acompanhava seu senhor em suas excursões, sem esquecer quando recitava... Dava a replica a meu senhor em todas as falas: se fosse um deus, eu era um soberano, e, quando ele dava morte, eu dava a vida’ (Etienne Drionton. Lê théâtre égyptien, loc. Cit., p. 363 et seqs.). É licito deduzir daqui que os atores profissionais deviam gozar de grande prestigio no Egito faraônico”.

De modo geral, os sacerdotes oficiantes dos cerimoniais primitivos se apresentavam maquiados e vestidos com ricas indumentárias. Esse ator primitivo tem função religiosa e apresenta-se como que possuído pela entidade da qual é instrumento, conforme ainda hoje podemos encontrar nas diferentes manisfestações do afro-catolicismo brasileiro: umbanda, quimabanda e candomblé. Esse ator-dançarino mascarado como um mago xamanista, por intermédio de quem os deuses se comunicavam, era alguém que instrumentalizava comportamentos incomuns, acima do humano. O ator primitivo era veiculo e instrumento de mensagens metafísicas aos fies e atentos espectadores.

Algumas tribos primitivas chegarão a uma espécie de profissionalização desse ator, que, aos grupos, percorrera as aldeis, as ilhas, os povoados, como entre os povos nativos da Polinésia e da Nova Pomerânia.

Estudando as origens do ator, Édouard Shuré, citado por Hermilo Borba Filho, propõe que “o homem ainda não podia exprimir com palavras o que sentia de mais profundo e que as sensações nele produzidas pelo espetáculo da natureza eram traduzidas pela dança” – forma de linguagem por meio da qual os fenômenos eram imitados e celebrados fisicamente. Este ato é comum a todos os homens – embora em variados graus -, desde que existe o homem.


Um comentário:

gabriel disse...

essa prova vai ser dificil *_____8